domingo, 23 de dezembro de 2012

A ESCOLA AMARELA

      


São Roque,  a escola amarela, ficava lá, no meio do nada, no meio de tudo.  Não tinha quase nada, mas ao mesmo tempo tinha tudo.   Na verdade, lá estava nosso mundo precioso, nosso universo encantado e que tanto nos fascinava.

O grande casarão amarelo que ostentava em lados opostos, altas janelas basculantes, que ao mesmo tempo  nos encantavam  e assustavam, pelo modo de abrir e fechar. O fascínio ao abrir e  ver  como a luz ia tomando conta de tudo, misturava ao medo, de que pudesse escapar, bater forte e machucar quem por perto estivesse. Havia sempre aqueles que  dispostos a a aventura de abri-las e fechá-las.  De certa maneira era um momento concorrido para alguns.   Havia na frente, além da mesa da professora, a bandeira, e três lousas, em tamanhos diferentes, que de lá parecia espreitar, pois  sempre éramos encarregados de copiar de lá, aquelas lições que enchiam  várias folhas dos cadernos, tanto de linguagem como de aritmética.  As séries eram divididas por quatro fileiras, de primeira a da quarta série. 

Dona Maria, era calma e  tinha uma voz tão doce, mas ao mesmo tempo era exigente, ensinava com o equilíbrio do amor e o rigor, que classes naqueles moldes, com alunos de diferentes idades e séries exigiam.   Ainda lembro como alfabetizava com tanta paciência.  Enquanto segurava o giz, ia traçando linhas sobre a lousa e magicamente encantava com lindas canções...  E com ela embarcávamos numa canoa,  e cantávamos: a canoa virou...  vou deixar ela virar...   e a  canoa virou palavras e lembranças em nós. Se houve alguém que não soube remar, nós nunca ficamos sabendo.   Da parte dela, vieram  os remos, os barcos, e um oceano inteiro a desbravarmos. 

Passado um tempo, devido ao número de alunos, dividiram as turmas e prosseguimos primeiro e segundo anos,  no período da tarde,  com a professora Diva.  Ela era assim, bem divertida,  e gostava de se envolver nas brincadeiras durante o recreio.   Então este momento tão esperado virava  festa.  Tivemos oportunidades distintas,  em que cada uma deixou em nós seus legados.  

Pudemos continuar nossa epopeia, com maior atenção, e então iniciar nossa caminhada pelas curvas da estrada, da “Caminho Suave”. Conhecemos a Lalá.  A personagem da cartilha, que foi nos mostrando conforme o compasso do relógio, as muitas lições,  até que chegasse ao fim.

Naqueles tempos, as carteiras eram daquelas em duplas, geminadas, então era normal os alunos sentarem lado a lado.  Não havia problema algum nisso,  e nem mesmo nos dias de prova. Nossa formação não permitia que sequer olhássemos para os lados.   As carteiras tinham um tampo que levantava e dentro podíamos guardar a bolsa. A minha era de couro marrom e  fechada por dois botões.  Eu herdara de meus irmãos mais velhos, mas apesar de usada,  era um luxo. E eu  me  sentia privilegiada, pois a maioria levava os materiais em bornais de tecido.  Para não me sentir melhor, pedi que minha mãe também fizesse uma bolsa de tecido, e ela me atendeu de um jeito bem caprichoso. Mas havia o desconforto com a umidade do orvalho das manhãs ou com a chuva e eu acabei deixando de lado. Assim, voltei pra minha velha bolsa de couro. Dentro dela: os cadernos caprichosamente encapados com plástico vermelho, enfeitados com muitas figuras e decalques, a cartilha Caminho Suave, o lápis de escrever daquele que lembrava um bambuzinho, o apontador verde e alguns poucos lápis de cores. Naquele tempo, as opções por cores ainda eram muito restritas.

Assim  o tempo passaria.   Num lugar de céu tão azul, com chuva de verão, sempre surgia no céu belos arco-íris.  Quantas vezes, sentados no gramado, apreciávamos aquele arco  lindo em algum ponto do céu. Sempre havia  alguém que viajava pela imaginação, sonhando com o grande pote de ouro ao final do arco íris. Quase todos nós éramos assim - sonhadores.  Que vontade de estar lá no alto e descer escorregando como num tobogã, até chegar ao seu final.   O que não imaginávamos,  é que o grande tesouro não estava lá, e sim, exatamente no ponto onde estávamos.   Sim, bem ali,  estava o nosso maior tesouro: a nossa infância feliz, tão cheia de risos, das vozes,  das cantigas de roda, das cinco marias, do anel precioso, da balança caixão, do pique,  da salva,  da betes e  das brincadeiras que nos acompanhariam para sempre...

Lá ficaram nossos anseios, nossas angustias,  diante do desconhecido, nossa paura misturada com a vontade de mostrar nossos avanços, àquela que sempre chegava de surpresa: a Diretora - Dona Maria BemWenites, cujas visitas  eram sempre esperadas. Ela  sempre aparecia numa kombi  do departamento.  Bastava surgir lá no alto do morro, que alguém já gritava: A diretora vem vindo!    Era uma gritaria, a escola toda em polvorosa. Uns que gostavam e outros que tinham medo da sabatina, do exame, ou até mesmo da equipe da vacina, que naqueles tempos também faziam suas surpresas na escola.   Era sempre um risco, algo sempre incerto, mas o que ainda está latente em mim, são aqueles olhos azuis esverdeados, aquele jeito de branca de neve e a delicadeza daqueles gestos. Num tempo em que EAD não existia, a diretora tinha que se desdobrar e dar conta de visitar tantas outras escolas.  Dirigia assim, com visitas esporádicas e surpresas em tempo incerto. Mesmo assim, era como se estivesse sempre por ali, sempre conosco. Nossa disciplina e dedicação sublinhavam isto. Éramos crianças com sede do saber, querendo ser gente, sermos reconhecidas, notadas  pela maneira de comportar de aprender  e de ser

As manhãs úmidas e ainda orvalhadas seriam enxugadas pelo sol que caprichosamente iria também clareando nosso mundo interno e  dentro de cada um.  Moldaria  o saber em tantas vidas que por ali passariam.    As regras existiam e eram cumpridas. A professora era alguém por quem tínhamos um misto de afeto, ternura e muito respeito.  Alguém muito importante  que segurava em nossas mãos.  Alguém que plantando seu amor nos salvaria da ignorância. Que nos guiaria e nos conduziria por caminhos desconhecidos.    O mesmo fascínio que nos governava, também nos fazia redimir e demonstrar singelos sentimentos diante daquela autoridade. O amor movia as engrenagens e nos afastava da ignorância.   Éramos crianças, sim apenas crianças...   Mas já querendo ser gente, fazendo direito, conforme aprendíamos com nossos pais.  Com respeito, sem afronta, movidos não pelo medo, mas pela autoridade, que ali nos servia de ponto de referência.

Na máxima de dizer que tudo passa, há uma contradição que insiste: aquele universo não passa, permanece em mim. O aroma da natureza abundante, do capim gordura, dos eucaliptos, da erva doce, das laranjeiras que emolduravam aquele lugar, não passam.  Não passam também, as risadas, os gritos, as brincadeiras do recreio, a hora de recitar poesia, e os contos maravilhosos.  A oração de entrada ficou. O Doce Coração de Maria deixou doçura. O Santo Anjo ainda  me guarda e  continua Divando em minhas lembranças.

A mesa da professora continua lá...  E aquele jaleco branco também...   As escritas na lousa, o pó branco do giz de dentro e a poeira vermelha de fora, a chuva, as trovoadas, o barro liso, as pedras do caminho, a criançada da região. Aqueles bloquinhos de gente bordando diferentes caminhos de volta para casa. O milharal,  que iria virar fubá lá no moinho dos Rochhas,  a cana  que virava  rapadura feita por meu pai,  e que eu compartilhara com queijo feito por  minha mãe, tantas vezes no recreio.   O  cheiro do arroz sendo cortado na safra, o cafezal em flor ou em cereja nos pés carregadinhos, o carro de bois que vinha pela estrada,  rangendo ao longe e o gado que nos assistia,  ruminando bem ali, do outro lado da cerca.

Ficaram em algum lugar tantas lembranças, com a abundância de afeto, as regras tão eficazes e fundamentais que formataram  aqueles que  por ali passaram.

A São Roque continua lá.  O tempo passou, mas não conseguiu desbotar sua cor. Ela não passa e em minhas lembranças continua intacta, exatamente como a vi pela última vez lá do alto do morro: A ESCOLA AMARELA.


Por:  Lúcia de Fátima Marques Peres

Tempos de Escola - V -    










 



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